Como disse Voltaire, o segredo de aborrecer é dizer tudo. Então vamos lá.
A foto acima circulou bastante na Internet ontem. Vemos ali Dilma Rousseff, aos 22 anos, em novembro de 1970, quando depunha numa auditoria militar, no Rio. A imagem está no livro “A Vida quer coragem”, de Ricardo Amaral, que foi assessor da Casa Civil quando Dilma era ministra. Ele trabalhou depois na campanha eleitoral da então candidata do PT à Presidência. A petezada está excitadíssima — uma estranha e mórbida excitação, acho eu. Já falo a respeito. Antes, algumas considerações.
A hagiografia lulística exalta o nordestino tangido pela seca, o menino pobre, depois operário e sindicalista, que venceu todas as vicissitudes do destino — sua mãe nasceu analfabeta; fosse rica, já viria à luz citando Schopenhauer — até se tornar presidente da República e inventar o Brasil. Antes dele, eram trevas. Em palanque, o homem já chegou a se comparar a Cristo. O analfabetismo de nascimento de Dona Lindu é, então, uma espécie de metáfora da virgindade de Maria. Dilma, cuja família era rica, tem de ser santificada por outro caminho. Em tempos de instalação de uma “Comissão da Verdade” — que será a verdade dos que perderam a luta, mas ganharam a guerra de versões —, é preciso ressuscitar a têmpera da heroína. Os grupos a que ela pertenceu praticavam, na verdade, ações terroristas. E daí? Isso não vai interessar à tal comissão.
Segundo se informa, Dilma havia sido torturada durante 22 dias antes de ser apresentada ao tribunal. Não vou pôr isso em dúvida. É coisa séria demais! Noto apenas que alguém que se deixa torturar pela lógica se vê obrigado a indagar por que os trogloditas que a seviciaram interromperam o serviço sujo para dar curso ao aspecto legal e formal da prisão. Adiante. O fato é que a imagem reúne um coquetel de clichês que serve à hagiografia dilmista.
Vemos ali uma mocinha magriça, bonita, cabelo meio à la garçonne, socialista por dentro (mas isso não se vê, só se sabe) e existencialista por fora. Embora, consta, ela desse aula de marxismo para a sua turma e cuidasse de parte das finanças da VAR-Palmares, há a sugestão de uma intensa vida interior, mais para“A Náusea”, de Sartre, do que para a literatura leninista. Olha para o vazio, com uma firmeza triste. Atrás dela, fora do foco, militares devidamente fardados consultam papéis. As mãos escondem o rosto. O contraste resta óbvio: na narrativa fantasiosa, a vítima, de cara limpa, estaria enfrentando seus algozes, que tentariam se esconder da história. A justiça, firme e frágil, contra os brutamontes acovardados. Davi contra Golias. O Bem contra o Mal. A democracia contra a ditadura. O título do livro não deixa dúvida sobre o desfecho: “A Vida quer coragem”.
Em tempos de “Comissão da Verdade”, essa é a grande falácia alimentada por esse coquetel de clichês. Não eram democratas os militares que estavam no poder. Tampouco eram democratas aqueles que tentavam derrubar os militares do poder. Os poderosos de então tinham dado um golpe de estado. Os atentados terroristas não buscavam derrubá-los para instituir, então, um regime democrático no país. Os ditos “revolucionários” queriam também uma ditadura, só que a socialista.
Morreram 424 pessoas combatendo o regime militar — algumas delas com armas na mão, trocando tiros com as forças de segurança ou tentando articular as guerrilhas. Outras foram assassinadas depois de rendidas pelo Estado, o que é um absurdo. Os grupos de esquerda no Brasil, não obstante, embora com um contingente muito menor e muito menos armados do que o estado repressor, mataram 119! E, como é sabido, ninguém acende velas para esses cadáveres porque não têm o pedigree esquerdista. Contam-se nos dedos os “mortos pela ditadura” que não estavam efetivamente envolvidos com a “luta” para derrubar o regime. Não estou justificando nada. Apenas destaco, até em reconhecimento à sua própria coragem, que elas sabiam, a exemplo de Dilma, o risco que corriam. Já a esmagadora maioria dos indivíduos assassinados pelos grupos de esquerda — sim, também pelos grupos de Dilma — eram pessoas que nada tinham a ver com a “luta”, nem de um lado nem de outro: apenas estavam no lugar errado na hora errada: comerciantes, transeuntes, taxistas, correntistas de banco, guardas…
Apelando à pura lógica, isso é uma indicação do que teria acontecido se os movimentos ditos revolucionários tivessem realmente conseguido se armar para valer, atraindo milhares de brasileiros para a sua aventura. Teria sido uma carnificina, como é, ou foi, a história do comunismo. Dada a brutal diferença de aparato, fôssemos criar um “Índice de Letalidade” das esquerdas armadas e das forças do regime, elas ganhariam de muito longe. No campeonato na morte, as esquerdas são sempre invencíveis. É inútil competir.
Esses são fatos que a foto esconde. A luta dos democratas — não a dos partidários de ditaduras — nos restituiu um regime de liberdades públicas e respeito ao estado de direito. Felizmente, Dilma sobreviveu e é hoje umas das beneficiárias, em certa medida, de sua própria derrota, já que é a democracia que a conduziu ao posto máximo do país. Este garoto, no entanto, não teve igual sorte.
Trata-se de Mário Kozel Filho, que morreu num atentado praticado pela VPR no dia 28 de junho de 1968. A organização terrorista lançou um carro sem motorista contra o QG do II Exército, em São Paulo. Os soldados que estavam na guarda dispararam contra o veículo, que parou no muro. Kozel foi em sua direção para ver o que tinha acontecido. O carro estava carregado com presumíveis 50 quilos de dinamite. A explosão fez em pedaços o corpo do garoto, que tinha 18 anos. Treze meses depois, a VPR se fundiu com o Colina, o grupo a que pertencia Dilma, e surgiu a VAR-Palmares. Os assassinos de Kozel foram, pois, companheiros de utopia daquela moça que lembra uma musa existencialista na foto que agora serve à hagiografia.
Este homem também não teve a mesma sorte de Dilma.
Trata-se do capitão da PM Alberto Mendes Júnior, assassinado por Carlos Lamarca e seus comparsas da VPR no dia 10 de maio de 1970. Àquela altura, o grupo já havia se separado da VAR-Palmares. Mendes havia sido feito prisioneiro do grupo. Como julgassem que ele estava atrapalhando a fuga, um “tribunal revolucionário” decretou a sua morte. Teve o crânio esmagado com a coronha de um fuzil. Dia desses, vi um ator na televisão exaltando a “dimensão da figura histórica de Lamarca”. Entenderam???
Caminhando para a conclusãoAlguns bobalhões — os que me detestam, mas não vivem sem mim — enviaram-me vários links com a foto de Dilma, fazendo indagações mais ou menos como esta: “E aí? Quero ver o que você vai dizer agora”. Pois é… Já disse! Alguns preferem ficar com as ilusões que a imagem inspira. Eu prefiro revelar os fatos que ela esconde.
A presidente Dilma Rousseff — que se fez presidente justamente porque as utopias daquela mocinha frágil, felizmente, não se cumpriram — assinou anteontem a carta da tal Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Trata-se apenas de uma iniciativa para dar voz a delinqüentes como Raúl Castro, Hugo Chávez, Rafael Correa, Daniel Ortega e Evo Morales. A carta democrática não toca em eleições e imprensa livre porque isso feriria as susceptibilidades desses “democratas diferenciados”. Na cerimônia, o orelhudo Daniel Ortega identificou um grande mal na América Latina: A IMPRENSA.
De certo modo, Dilma assinou aquela carta com os olhos voltados para o passado. E ela só é presidente porque os democratas lhe deram um futuro.
Por Reinaldo Azevedo
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